

Leia-se Lucas 16:19-31.
Nesta parábola muitos acreditam achar apoio para a crença popular de que, na ocasião da morte, os justos vão para o Céu, e os ímpios para as chamas do tormento. E diante do fato de Jesus ter iniciado a ilustração com a palavra “havia [...] ”, alguns ousam mesmo dizer que não se trata aqui de uma parábola, mas sim de um acontecimento real.
Todavia, outras parábolas de Jesus também foram apresentadas como se fossem acontecimentos reais. Exemplo: “Havia um certo homem rico, o qual tinha um mordomo ..” (Lucas 16:1). No entanto, esta parábola — a do mordomo infiel — nunca deixou de ser uma parábola e, portanto, o mesmo deve também valer em relação à parábola do rico e Lázaro.
Uma análise desta parábola demonstra que a mesma não pode ter aplicação literal, senão alegórica. Se todos os pobres fossem, na ocasião da morte, para o seio de Abraão, então este deveria ter um seio assombrosamente grande, a fim de que pudesse conter a inumerável multidão de salvos. Se os detalhes desta parábola devessem ser interpretados literalmente, então os que estivessem no Céu reconheceriam seus entes queridos nas chamas do inferno. Pais e mães, por exemplo, veriam seus filhos, que tivessem levado vida ímpia, a contorcer-se em tormento, e ouviriam seus lancinantes gritos. Quão triste seria, para os salvos, um céu nestas condições! Se a parábola do rico e Lázaro tivesse aplicação literal, então os sentenciados, que devessem estar nas chamas do inferno, teriam lábios materiais que pudessem ser refrescados com um pouco d’água trazida na ponta do dedo. Então as tais “almas imateriais” têm lábios e dedos materiais?
É, pois, evidente que a linguagem aqui usada por Cristo é simbólica como a que encontramos em Juízes 9:8-15: “Foram uma vez as árvores a ungir para si um rei; e disseram à oliveira: Reina tu sobre nós. Porém a oliveira lhes disse: Deixaria eu a minha gordura, que Deus e os homens em mim prezam, e iria a labutar sobre as árvores? Então disseram as árvores à figueira: Vem tu, e reina sobre nós. Porém a figueira lhes disse [...] ”
Convém, todavia, notar que Jesus, em Suas diversas ilustrações, usava certos detalhes acidentais apenas para completar o quadro alegórico, detalhes esses que, entretanto, não têm aplicação à coisa principal que essas parábolas têm por fim ilustrar.
Vejamos, por exemplo, a parábola do juiz iníquo e a viúva. Lucas 18:1-8. A viúva ia ter constantemente com o juiz, pedindo-lhe que fizesse justiça contra um adversário seu. O juiz, a princípio, não dava ouvidos à mulher, mas finalmente, para não mais ser molestado, resolveu atendê-la. Jesus, por meio, desta parábola, ilustrou o seguinte fato principal: A necessidade de orarmos perseverantemente a Deus para sermos atendidos. Ora, o juiz da parábola era “injusto” (Lucas 18:6). O juiz celestial (Tiago 4:12), porém, não é injusto como o da parábola. Por aí, vemos que o detalhe “injusto” foi acidentalmente acrescentado na ilustração unicamente para completar o quadro ilustrativo, mas não pode ser aplicado ao fato real — a coisa essencial — que a parábola tem por fim simbolizar.
Outro exemplo dessa natureza encontramos na parábola do mordomo infiel, em Lucas 16:1-9. Lemos aí que o mordomo procedeu desonestamente para com seu patrão, a fim de fazer provisões para o futuro. Mas qual é o objetivo da parábola? Ilustrar a necessidade de sermos infiéis e desonestos? Não, absolutamente! Jesus, pela parábola do mordomo infiel, ilustrou apenas nosso dever de fazer provisões para o futuro, a fim de que sejamos recebidos “nos tabernáculos eternos” (verso 9). O procedimento desonesto do mordomo foi um detalhe acidental, introduzido apenas para completar o quadro ilustrativo, não tendo, por isso, aplicação à coisa principal ilustrada: Fazer provisões para o futuro.
Assim, também, os detalhes acidentais da parábola do rico e Lázaro não têm aplicação aos fatos que o Salvador queria ilustrar, quais sejam: As condições favoráveis em que se achavam os judeus, em relação aos gentios, na velha dispensação, e as condições desfavoráveis em que se achariam os judeus, em relação aos gentios, na nova dispensação.
Na velha dispensação, os judeus podiam ser comparados ao rico quando se deleitava com seus bens. Ver Romanos 9:4-5. Os gentios, porém, eram considerados como cães, e, no tocante à religião, tinham que contentar-se com as migalhas que caíam da mesa dos afortunados. Mas na nova dispensação operou-se uma mudança. Os gentios que aceitaram a Cristo estão simbolicamente gozando as bênçãos do seio de Abraão, como disse Paulo: “se sois de Cristo, então sois descendência de Abraão, e herdeiros conforme a promessa” (Gálatas 3:29). Os judeus, entretanto, desde essa mudança, estão, figurativamente, em tormento: “E vos espalharei entre as nações, e desembainharei a espada atrás de vós..” (Levítico 26:33). O que os separa das bênçãos do seio de Abraão, é o abismo da desobediência e incredulidade. (Romanos 11:20, 23).
O motivo por que Cristo usou as referidas cenas para ilustrar Sua lição objetiva, reside, evidentemente, no fato de que, nos Seus dias, já predominavam em muitas mentes, por influência do paganismo, ideias sobre o estado consciente dos mortos, inferno, purgatório, limbo, etc. Cristo, diante disso, enfrentou seus ouvintes no seu próprio terreno, porque, diz o Senhor, “qualquer homem [...] que levantar os seus ídolos no seu coração [...] lhe responderei conforme a multidão dos seus ídolos” (Ezequiel 14:4). Este princípio vemos também no trato do Senhor com Balaão; com os israelitas no deserto, quando pediram carne para comer; com Josafá, quando, em aliança com Acabe, entrou em guerra contra Ramote Gileade; etc.
A parábola do rico e Lázaro encerra também outras lições objetivas, além da que aqui consideramos.