

*[i]
Que houve uma mudança de paradigma quanto a doutrina da Trindade no movimento adventista isso não se discute. O que está em discussão são as implicações desse fato:
· Por que houve essa mudança?
· Por que a profetisa não condenou os seus contemporâneos por serem contra a doutrina da Trindade?
· Ellen G. White era trinitariana ou não? Ou será que ela mudou de opinião passando de uma posição para outra?
· Que influência de Ellen G. White teve nesse debate?
· O que ela pensava sobre a Divindade?
Uma leitura atenda dos seus escritos combinada com a sua contextualização histórica pode ser útil a fim de responder a essas e outras questões.
Exemplos de mudanças
A dificuldade de aceitar que Ellen White mudava de opinião está relacionada com a forma como a pessoa entende o processo de inspiração. Para alguns, toda a compreensão sobre Deus e sua Palavra veio a sra. White por meio de revelação. Sendo assim, ela não poderia mudar de opinião. Se Deus não muda, aquilo que Ele revela também não pode mudar. Contudo, essa compreensão da natureza da inspiração e da relação entre a revelação e o profeta é equivocada. Assim como acontece conosco, a forma como o profeta compreende a verdade é um processo multifacetado.
A maneira como Ellen White recebeu a luz sobre o sábado demonstra que o profeta não depende apenas da revelação para conhecer a verdade. Ela teve a sua primeira visão, em dezembro de 1844 (PE 13), mas só veio aceitar a doutrina do sábado dois anos depois. Isso aconteceu por meio da leitura e estudo de um livreto de 48 páginas escrito por José Bates. Ela recorda que "no outono de 1846” começou “a observar o sábado bíblico, e a ensiná-lo e defendê-lo." 1T 75. A visão que confirmou essa verdade só foi dada no primeiro sábado de abril de 1847, sete meses depois dela começar a guardar e ensinar sobre essa doutrina. Nela a profetisa viu as tábuas da lei na arca, no santuário celestial, e um halo de luz circundando o quarto mandamento (PE 32-35). O conhecimento da verdade do sábado não veio por meio de revelação direta, mas pelo diligente estudo das Escrituras.
As revelações também podiam corrigir erros de opinião da profetisa. Até a visão da Reforma de saúde, de 1863, os adventistas eram grandes consumidores de carne de porco e eles não viam problema nisso. A sra. White chegou a repreender S. N. Haskell que pregava e ensinava contra o consumo da carne de porco:
“Vi que vossas opiniões acerca da carne de porco não se demonstrariam danosas se vós a guardásseis para vós mesmos; mas em vosso juízo e opinião fizestes deste assunto uma prova de comunhão, e vossas obras tem mostrado claramente vossa fé nesta questão. Se Deus quiser que Seu povo se abstenha da carne e porco, Ele os convencerá a este respeito. O Senhor está igualmente desejoso de mostrar tanto a seus filhos honestos o dever deles, quanto o dever daqueles sobre os quais colocou o encargo de Sua obra de Sua obra. Se é o dever da igreja abster-se de carne de porco, Deus revelará isso a mais de dois ou três. Ele ensinará à Sua igreja seu dever.” 1T 206.
Em nota, Tiago White explica que “esse notável testemunho foi escrito em 21 de outubro de 1858, cerca de 5 anos antes da grande visão de 1863 na qual foi comunicada a luz sobre a reforma de saúde.” 1T 230 [nota]. Para ser mais preciso, a primeira visão sobre a Reforma de Saúde foi dada “na casa do irmão A. Hilliard, em Otsego, Michigan, a 6 de junho de 1863.” CRA 481. A partir dessa época a profetisa abandonou o uso da carne de porco e esse assunto se torna questão de prova de comunhão.
Desse episódio podemos aprender alguns princípios. Em primeiro lugar, a profetisa podia mudar de opinião, desde que recebesse maior luz sobre o assunto. Em segundo lugar, a nova compreensão doutrinária não seria dada a indivíduos mas a igreja, em geral. E por último, Deus estaria dirigindo o processo. Como veremos, esses mesmos princípios podem ser aplicados na questão da Trindade.
Podemos citar outro exemplo onde o estudo da Bíblia podia levar a profetisa a ter uma compreensão mais madura sobre algum tema: a questão do início e término do sábado. Durante nove anos os White observaram o sábado das 18h de sexta-feira às 18h de sábado. A guarda do sábado de pôr-do-sol à pôr-do-sol foi adota depois que J. N. Andrews publicou um artigo na Review onde demonstrava que esse era o padrão bíblico de se observar o dia santo. Mais uma vez, ela foi convencida pelo estudo das Escrituras e não por meio de visão.
O último exemplo que podemos citar de Ellen White mudando de opinião é a questão da porta aberta e da porta fechada. Baseados na parábola das dez virgens, os mileritas acreditavam que aqueles que rejeitaram da verdade da vinda de Cristo para 1844 eram representados pelas virgens imprudentes. Esse grupo, que por ocasião da boda do cordeiro, seria deixado para fora, pois a porta da graça estaria fechada (Mt 25.10-12). Depois dos eventos de 22 de outubro de 1844, o pequeno grupo adventista que se organizou em torno da verdade do sábado e do santuário acreditava que a porta da graça estava fechada para o mundo e que a sua obra de pregar era restrita aos mileritas desapontados. Ellen White conta:
“Por algum tempo depois da decepção de 1844, mantive, juntamente com o corpo do advento, que a porta da graça estava para sempre fechada para o mundo. [...] Foi a luz a mim concedida por Deus que corrigiu nosso erro, e habilitou-nos a ver a verdadeira atitude.” 1ME 63.
Existem outros exemplos que poderíamos usar para demonstrar que Ellen White poderia mudar de opinião ou revelar amadurecimento da sua compreensão de um assunto por meio do estudo da Bíblia. Mas os que citamos até aqui é suficiente para ilustrar como a compreensão da verdade é um processo complexo e que nem o profeta está isento dele. A sra. White não estava fechada para receber nova luz e para mudar de opinião quando fosse convencida disso. Os exemplos que citamos acima servem de base para confirmamos a tese de que a compreensão da natureza da divindade por Ellen White passou por um processo de amadurecimento e aprofundamento a medida que seu conhecimento bíblico ia aumentando e as visões se acumulavam.
Nos seus primeiros escritos a imagem da divindade está um tanto desfocada e uma leitura ambígua pode ser feita nos seus escritos sobre o tema. Mas a medida que o seu conhecimento da Bíblia vai se aprofundando, combinada com as suas visões e o amadurecimento da sua experiência cristã, a profetisa revela mais clareza e definição no seu conceito sobre Deus. Por fim, na época em que ela escreve as suas mas importantes obras, Ellen White expõe o que entendia sobre a divindade de forma tão clara que pode se afirmar que ela foi dogmática. Contudo, neste processo, deve-se destacar que ela nunca condena a doutrina da Trindade de forma direta como os seus contemporâneos fizeram.
[i] Esse capítulo foi baseado nos trabalhos de: Jerry Moon, Ellen G. White e a compreensão da trindade. Revista Parousia, 1º semestre de 2006, p. 11-25; Matheus A. Cardoso, A doutrina da trindade na Igreja Adventista do Sétimo Dia (1890-1915), revista Kerigma XXXXX; CARDOSO, Matheus. Os pioneiros adventistas e a Trindade, Revista Adventista, agosto de 2011, p.8-11; Woodrow Whidden, Jerry Moon e John Reeve, A Trindade: como entender os mistérios da pessoa de Deus na Bíblia e na história do Cristianismo, p. 216-249.